Ir o contido principal
STG

Discurso de Ivo Castro

Lección doutoral de Ivo Castro na súa investidura como Doutor Honoris Causa en Filoloxía

Momento do discurso de Ivo Castro
Momento do discurso de Ivo Castro

Permita-me que torne extensivo este agradecimento aos Doutores e ao Claustro da Universidade de Santiago de Compostela, cuja extrema generosidade me confunde, especialmente por nesta circunstância terem decidido ser mais amigos da minha pessoa que da verdade. A todos deixo manifesto o meu respeito e a minha gratidão, e em especial ao meu bondoso Padrinho, que aqui me trouxe e me guia nesta cerimónia. Não sei que banalidades da minha vida ele transformará em virtudes merecedoras deste galardão, mas confio na vossa sabedoria para distinguirdes entre o que é alquimia e o que é pedra ‒ pedra, papel, pergaminho, tinta, voz e lembrança de vozes passadas, porque é junto a essas materialidades que mais verdadeiramente me encontrareis. E também em certos sentimentos, entre eles, e hoje especialmente, a minha dedicação pela Matéria de Galiza.

Seja-me ainda permitido destacar a presença neste acto de colegas meus da Faculdade de Letras de Lisboa, a escola onde estudei, me formei e ensinei durante 49 anos, ou seja a única escola a que pertenci, até hoje. Por isso, cabe-lhes também uma parte maior deste galardão. Aos colegas aqui presentes, agradeço o conforto da sua companhia, embora não seja de excluir a possibilidade de esta cerimónia não ser todo o motivo, mas tão só o pretexto, da sua viagem desde Portugal. É que portugueses como nós sempre buscamos razões para ascender até Compostela.

Sou, se bem conto, o sexto português distinguido pela Universidade de Santiago de Compostela com este grau, tendo como antecessores Mário Soares, Marcelo Caetano,

Gustavo Cordeiro Ramos, e ainda dois professores da Universidade de Coimbra: Manuel Paulo Merêa e Jorge de Alarcão, ambos académicos puros, reorganizadores de áreas de estudo que muito têm a ver com as nossas relações umbilicais com a Galiza: Merêa o património documental que permite reconstituir com solidez a história portucalense, Alarcão a base sobre a qual os romanos edificaram permanências que chegaram aos nossos dias. É à sombra e protecção destes dois sábios que nesta hora me acolho, tanto mais que irei tocar ao de leve em assuntos que eles ajudaram a desvendar e sistematizar.

Mas não ficaria bem com os meus sentimentos se não agregasse a este grupo de portugueses doutorados por Santiago o nome do meu mestre Joseph-Maria Piel, que é muito mais galego e português que alemão, pois ensinou em Portugal durante quase 40 anos e ali viveu muitos mais. Foi através dele que conheci outros discípulos seus, amigos que me ficaram para a vida, um dos quais tenho a satisfação de ver sentado à minha frente, o Professor Ramón Lorenzo.

Piel não conheceu D. Carolina Michaëlis, que veio substituir em Coimbra, mas conheceu Leite de Vasconcelos e nele se inspirou para os seus temas principais de investigação: os dialectos transmontanos de início, depois o séc. XV, a literatura de Avis e a fase do português médio; finalmente, a etimologia e a onomástica medievais, tanto galegas como portuguesas, que ele não destrinçava. Melhor dito, que ele não conseguia nem desejava destrinçar; de facto, tanto numa perspectiva disciplinar, como territorial, Piel demonstrou as virtudes funcionais de uma entidade cultural e historicamente pouco definida, de fronteiras permeáveis e povos móveis, que abrangia toda a Galiza e o condado portucalense até um limite a sul que não atingia os campos do Mondego, mas se ficava pelo vale do rio Vouga, uma fronteira subtil que Orlando Ribeiro descreve em termos atmosféricos, quando

aponta para o contraste entre «a luz crua que separa o Baixo Mondego dos tons suaves e esbatidos da Ria de Aveiro». Fronteira subtil, não deixa por isso de ser uma fronteira física, e também humana, que historicamente separou aqueles que, a norte, falam uma língua nascida no chão em que nasceram daqueles que, a sul, falam uma língua que começou por ser transportada desde o norte, para depois ali se transformar em outra coisa. Para designar este vasto território que corresponde ao ângulo noroeste da Península Ibérica, Piel escolheu um mot-parapluie que abriga confortavelmente a maior parte dos discursos que podem ser feitos sobre a antiga realidade galega, portucalense e portuguesa, uma espécie de Schengen linguístico a que ele costumava chamar Galécia Magna.

Digo que este conceito de Galécia Magna é confortável, porque nos permite falar dos tempos em que Galiza ganhou autonomia em relação a Leão, e Portugal em relação a Galiza e Leão, sem recorrermos a categorias e designações modernas, tantas vezes coloridas pela visão nacionalista ou regionalista de quem as usa. Desconfortável para mim, que vejo na Galécia Magna a pátria em que a nossa língua nasceu, é enfrentar a ideia de que essa pátria da língua fosse a Lusitânia, como pensava o neo- lusitano e beirão Leite de Vasconcelos. Como, aliás, pouco conforto me dá atopar com pedaços do português medieval utilizados na construção dessa obra monumental intitulada Orígenes del Español. Em compensação, aceito sem problemas a afirmação, tão ouvida, de que «em Portugal se fala galego meridional», porque não pretende ser levada a sério, mas tão somente reforçar laços de consanguinidade que são íntimos e carinhosos.

Na Galécia Magna, a que Lindley Cintra chamava, de modo mais prosaico, área inicial do romance galego-português, eram falados dialectos aproximados por traços comuns, que não se encontravam no leste leonês e castelhano, nem no sul moçárabe.

Mas esses dialectos da área inicial passaram a dispor com a Reconquista dos sécs. XII e XIII de uma área ampliada, na qual as populações migrantes tiveram de se adaptar a novas regras de vizinhança, não só entre os dialectos galego-portugueses que no norte eram distintos, mas também com a população autóctone com a qual se mesclaram. Para esta população ‘reconquistada’, digamos assim, que provavelmente falava árabe com memórias romances, os dialectos galego-portugueses devem ter tido o sabor de uma língua segunda, que adquiriram com bastante, mas não total, proficiência, dando assim origem a novos dialectos. Neste processo, duas realidades demográficas de força contrária foram determinantes: de um lado, a permanência de populações autóctones com modos de viver que se mantinham estáveis e pouco mudados desde a romanidade (permanência, note-se, que algum esforço lhes deve ter requerido, para resistirem a invasões de vários tipos e proveniências, vindas tanto do norte como do sul); por outro lado, essas precisas ‘invasões’, que se traduziam na migração de populações. O resultado imediato encontra-se naquilo que José Mattoso designa como «progressos do povoamento intercalar na Estremadura, Ribatejo e Beira Baixa durante o século XIII», isto é o vale do rio Tejo de lado a lado do país, enquanto as guerras da Reconquista progrediam a sul.

Um aspecto fundamental é de reter: a caracterização deste povoamento como ‘intercalar’, o que quer dizer que os povoadores iam encontrar terras ocupadas por populações antigas (com certeza bastante islamizadas, mas conservadoras competentes do passado romano e pré-romano), como aliás já tinha acontecido nas províncias do Norte e no vale do Douro, supostamente ermadas, mas afinal repovoadas casal sim, casal não, prova de que os novos possessores não encontravam ali os desertos sonhados por Sánchez-Albornoz, mas sim terras com dono, que estava presente. Esse povoamento intercalar, feito por colonos provenientes da Galécia Magna (minhotos e galegos) e dirigido inicialmente para a

Estremadura, a província das três grandes cidades reconquistadas – Coimbra, Santarém e Lisboa ‒, permitiu que aí se desse uma «verdadeira síntese de culturas que plasma a maneira de ser ‘portuguesa’», fórmula de José Mattoso, que junta: é nesse «espaço de osmose humana e cultural... que... se faz a síntese da cultura nortenha e da moçárabe». E que, acrescento eu, nascem os dialectos de que será feito o português clássico e moderno.

Este processo de síntese pode ser ilustrado com um exemplo. Na baixa Estremadura, na região que fica imediatamente a norte de Lisboa e de Sintra, mais conhecida por ‘região saloia’, existem duas aldeias próximas uma da outra, diferentes entre si, mas com duas particularidades que as singularizam e irmanam. Uma, a mais próxima do mar, é cosmopolita e desenvolvida, enquanto a outra é tão pequena que mais parece um casal. Ambas exibem vestígios de passado pré-histórico, que na primeira são continuados em tempo de romanos e árabes; na segunda, fora um carvalho centenário, o correr da história não é tão evidente. A primeira revela uma vida contínua e afluente desde a antiguidade, a segunda parece ter estado à espera do parque eólico que hoje é a sua principal razão de ser.

Quais são as duas particularidades que as relacionam? A latitude da sua localização e a etimologia do seu nome.
Ambas as aldeias se situam no mesmo paralelo a 38 graus de latitude norte, por sinal o mesmo paralelo que separa as duas Coreias. Sendo ambas equidistantes do Equador, os avanços da Reconquista e do povoamento foram encontrá-las mais ou menos ao mesmo tempo.

Em segundo lugar, elas acham-se irmanadas pela origem comum, que é latina, do seu nome: Fontanellas, diminutivo de Fontanas, que também deu origem a Fontainhas.

Na aldeia maior, a mais próxima do mar, nada aconteceu ao nome desde que o recebeu na época romana. Continua, hoje como então, a ser chamada Fontanelas, como se nem árabes, nem minhotos ou galegos por lá tivessem passado. Na toponímia portuguesa, é um nome de ocorrência singular; da galega não consta.

A outra aldeia é hoje conhecida por Fontelas. Sendo o étimo o mesmo, o -N- intervocálico enfraqueceu e desapareceu e as vogais que então ficaram em contacto igualaram-se e fundiram-se numa só: Fontaelas > Fonteelas > Fontelas. Esta evolução é tipicamente galego-portuguesa e as suas formas intermédias encontram-se quer na toponímia moderna de Portugal e da Galiza, quer na documentação medieval.

O topónimo Fontanelas entrou no discurso linguístico através de um artigo de Herculano de Carvalho, «Moçarabismo Linguístico ao Sul do Mondego», que tinha como ponto de partida Leite de Vasconcelos. Resumindo muito, concluía-se que os dialectos levados do norte pelos reconquistadores nem sempre apagavam nomes originariamente romanos, conservados por moçárabes. É o caso de Fontanelas, caso isolado, mas sólido.

Quanto a Fontelas, o mais plausível é que tenha recebido esse nome na forma sincopada quando foi repovoada por migrantes provenientes de terras do norte, que já tinham o mesmo nome. O seu caso não é único. No mapa das províncias litorais portuguesas, observa-se um percurso linear seguido pelos povoadores que foram semeando este topónimo fora da Galécia Magna: em Aveiro, uma Fontelas e uma Fontela; mais a sul, na Figueira da Foz, uma Fontela; mais um pouco, na Lourinhã, uma Fontelas, não muito distante, para aguçar a imaginação, de uma terra chamada São Bartolomeu dos Galegos. E, finalmente, a nossa Fontelas às portas de Lisboa.

O facto de este avanço linear se ter detido exactamente no paralelo e na proximidade de uma outra povoação, antiga e com o mesmo étimo, não pode ser senão uma feliz coincidência.

Feliz, entre outras razões, porque contribui para a elegância do exemplo: no vaivém de movimentos e influências entre norte e sul que caracteriza a longa história partilhada de Galiza e Portugal, o encontro destes dois topónimos (divergentes de um mesmo étimo, convergentes para um mesmo local) sintetiza o encontro das línguas que se articularam para produzir fora do território originário a língua a que chamamos português. E que depois iria iniciar o seu caminho pelo mundo fora (mas essa é outra história).

Para concluir – e coroar – a exploração desta coincidência toponímica, retomo, com adição de um pormenor, uma ideia de Henrique Monteagudo sobre a actividade daquele campo de força que «teve como base os falares do centro de Portugal (concretamente, da corte e das camadas cultivadas de Lisboa)». Parece-me indiscutível que a força que gerou por etapas uma norma literária, promovida pelos gramáticos e pela imprensa, a que damos naturalmente a designação de português clássico, foi uma força emanada do poder político e assente na língua falada e escrita pela classe que habitava a corte, entendida não em sentido áulico estrito, mas como população urbana da cidade de Lisboa e das áreas da sua influência.

Mas essa língua de onde surgira? Dos dialectos do centro e do sul do país, aí formados a partir dos dialectos galego-portugueses que, nas terras para onde se transplantaram, se transformaram e assimilaram, perdendo alguns dos seus traços fonéticos, esquecendo algumas palavras e adoptando, em geral, soluções linguísticas menos distintivas e mais consensuais. O nivelamento de diferenças que eram a essência da identidade dos dialectos originários criou os novos dialectos do centro e sul de Portugal. Esse nivelamento parece corresponder ao mecanismo conhecido por koinê. É um mecanismo lento que, para ter alcançado resultados no final da Idade

Média, teve de ser iniciado nos territórios reconquistados no dia seguinte à Reconquista.
E iniciou-se onde? Na corte, que estava em mudanças de residência (Afonso Henrique trocou Guimarães por Coimbra, mas Afonso III já vivia em Lisboa)? Nas cidades portuguesas do séc. XII e XIII, que se achavam em reorganização e crescimento?

Talvez não: o espaço mais propício para criação dessa koinê encontrava-se em lugares modestos, mas bem habitados dos campos à volta de Lisboa. Por exemplo, ao longo do paralelo de Fontanelas e de Fontelas.

Termino, reafirmando a minha gratidão pelo vosso acolhimento.